sexta-feira, 20 de março de 2020

Sétima Antologia Anjos de Prata

Uma publicação na Sétima Antologia Anjos de Prata - Editora Arte Literária, São Paulo, 2006, com organização de Beto Muniz.




Mariana
Parece que foi ontem que ela me pediu para ficar. Pedir foi pouco, implorou. Seu bafo de uísque veio em cheio na minha cara. Virei o rosto. A fumaça de seu cigarro de baile inundou o meu apartamento. Abri as janelas. Precisava me livrar daquele cheiro imundo que impregnava todo o meu corpo. Fechei-as depois, havia pessoas nas janelas do prédio da frente. Detesto esse cheiro quando já estou em casa. Fica enjoativo. Eu queria me livrar dela...
Ainda lembro da noite em que a conheci numa boate em Ipanema. Ela, com seus cabelos lisos e negros, dentro de um longo vestido preto e decotado, mastigando um chiclete qualquer, me olhou. Seu olhar a denunciava: estava só. Mais que isso, carente, pude ver em seus olhos. Veio se requebrando em minha direção ao som de uma música da qual não lembro mais. Sua boca, de súbito, invadiu a minha numa loucura total. Parecia estar drogada, bêbada, algo assim. Tentei sair fora, não tive chance. Ela beijava bem, não tinha mais como fugir. Ela colou em mim. Pude sentir seus seios grandes e macios contra o meu peito. Suas mãos se espalhavam em meu corpo, tórax, costas... Explorou cada centímetro de meu abdômen. Tarde demais. Entreguei-me. Dançamos uma música de ritmo alucinante. Mais uma dose de uísque e Red Bull desceu garganta abaixo. A hora voou.
Entramos no carro e fomos para o meu apartamento. Já era dia, pude perceber pelas palavras do porteiro: “Bom-dia, doutor!” (Era assim que ele costumava chamar os moradores do prédio). “Bom-dia!”, respondi sem ter certeza se era realmente dia ou ainda era noite. Entramos. Um bom banho poderia botar mais lenha na fogueira. Reavivar mais, talvez. Confesso que eu estava bastante cansado. Precisava dormir. Impossível! Mariana estava elétrica. (Ela me falou seu nome horas depois também não importava muito se tinha nome ou não. Quem ligaria para esse detalhe àquela altura?) Fechei as cortinas. O calor me invadiu. Liguei o ventilador. Que barulho dos diabos! Refrescar que é bom, nada! Não, não tinha ar-condicionado. As últimas latinhas de cerveja foram consumidas. Peguei um espumante que eu havia ganhado no Natal. Por incrível que pareça esse tipo de bebida não me agrada muito, prefiro “destilados”. Por fim, minha última garrafa de uísque importado estava sendo servida.
Depois de muitas loucuras, um descanso, enfim. Sua voz ebriosa diz que me ama. Fecho os olhos e ponho as mãos nos ouvidos, não quero ouvir aquilo. Ela lambe meu pescoço, acho nojento e a empurro para o lado. Está completamente bêbada. Dormimos.
Uma terrível dor de cabeça me atormenta. A ressaca, maldita ressaca! Mariana ainda dorme um sono profundo. Que loucura! Quem é essa maluca? Olho-a admirando suas belas curvas, coxas grossas e torneadas, pele azeitonada e macia. Beijo-a suavemente. Ela se mexe, ficando de bruços. Só agora percebo o quanto é linda. Sinto vontade de abraçá-la.
Dias depois ela me liga. Pergunto onde conseguiu meu número. Pegou com o porteiro. Mato aquele desgraçado! Não quero compromisso. Ninguém me enchendo o saco. Essas mulheres têm mania de colar na gente!
As ligações passam a ser constantes, e as visitas também, muitas delas tão loucas e belas quanto a primeira vez. Era um não querendo querendo, se é que o leitor entende o que quero dizer.
Passam-se os dias.
Grávida. Sim, grávida. “Há dois meses a menstruação não vem.” Só pode estar grávida. Não sei rezar, mas digo a Deus qualquer coisa. Prometo ser bonzinho, dar esmola aos pobres, ir à missa, qualquer coisa... Mas gravidez, não.
A campainha toca. Mariana entra feito um furacão. “Por que não me atende mais?” Empurro-a contra a parede, ela não revida. Grito, furioso, que nunca a amei, não a amo. “Um filho.” Mil coisas passam em minha cabeça. A boate, o beijo... O primeiro beijo. Foi ali que tudo começou. Ela tenta me beijar, diz que me ama. Empurro-a para longe de mim. Vidros se quebram. Gritos. Ambulância. Minha vista escurece. Um gélido metal agarra meus pulsos.
Anos se passam.
Olho a janela, o vidro ainda quebrado me assusta. Quatro horas da manhã e o calor está insuportável. Ligo o ventilador que faz mais barulho do que refresca o quarto. Estou sozinho. Mariana há tempos se foi. Lágrimas escorrem em meu rosto. Coração, fígado, tripas, tudo está encharcado de amargura. Ela surge no espelho, linda, com suas botas longas, um batom vermelho-sangue em seus lábios: é sangue! Seu vestido se espalha com o vento jogado pelo ventilador. Já não sou apenas lágrimas e suor; sou medo e desespero; sou ânsia e vômito.
Dirijo meu olhar para o vidro quebrado da janela por onde entram fantasmas e loucuras. A pureza de um amor manchada pelos negros desejos de um homem de pensamentos lascivos e impuros.
A solidão me abraça.
Olho a rua. Ipanema dorme. Ouço o barulho do mar a algumas quadras dali. Pelo buraco do vidro quebrado sinto o mar me beijar, um beijo frio, mas reconfortante. Há tempos não havia sido mais abraçado por alguém, ou por algo, neste caso.
Me sinto humano novamente, mas logo me vem a dúvida de se realmente o sou. Como poderia pôr fim à vida de alguém que me amava? De alguém que levava em seu ventre outro alguém que muito provavelmente me amaria. Passo a amá-los, mesmo que por um breve momento.
Olho a janela ainda precisando de conserto. Ao lado, um vaso de margarida trazido por ela em um de meus aniversários – só não lembro qual deles. Agora restava apenas o vaso. A margarida havia morrido fazia tempo. “Assim como ela”, pensei.
Uma nostalgia me abraçou, apertando-me. Chorei, gritei, quebrei algumas coisas. Mas nada a traria de volta. E lembrei-me de uma frase que li em algum livro de autoajuda que dizia assim: “Não importa o quanto você tenha mudado, um dia a conta chega”. Ela já havia chegado pra mim.
Não consigo me perdoar. Na verdade era ela quem poderia me perdoar. Mas como? Ela não está mais ali.
Ando da cozinha para o quarto e não a encontro. Vou ao banheiro, e nada. Procuro-a por todos os cômodos, mas só a encontro dentro de mim, no âmago de minha alma, dizendo que me ama; que eles me amam. Sim, mãe e filho.
Como fui incapaz de amar quem me amava?
Vou à janela novamente. Olho a rua e imagino que em algumas vielas homens e ratos, em harmonia, dividem o mesmo espaço.
Não fui digno de tanto.

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