sexta-feira, 20 de março de 2020

Menino de morro


Conto classificado no Concurso Literário Prêmio Contos para Viagem – São Paulo -2006


No alto do morro, um menino franzino, de aproximadamente 11 anos, sem camisa, pés descalços, solta pipa. Uma pipa alegre e feliz, que se deixa levar nas asas do vento, assim como o menino corre para cima e para baixo, sem compromisso com o tempo, sem preocupações com a vida; o único compromisso do garoto é manter sua pipa no ar. Com seu carretel de linha deslizando no chão enquanto ele puxa, solta, faz uma quebra de corpo pra todos os lados, caras e bocas... bem, o que ele pensando só Deus sabe.
            Uma outra pipa corta os ares a várias lajes dali, toda colorida. O grito de “Corta! Corta!” soa por todos os lados e, em alguns segundos, dezenas de meninos se aglomeram para acompanhar a guerra que será travada entre as duas pipas. Uma delas deverá ser cortada, isso dependerá da habilidade de quem as conduz.
            A luta é travada. Cada menino usa de sua agilidade para vencer o duelo. Apenas um será o vencedor, apesar de que quem vencer não verá a cara de derrotado do adversário, uma vez que eles estão distantes um do outro, em lajes longes uma da outra.
            Fogos estouram no ar. As pipas se perdem em meio à fumaceira. O menino franzino perde o duelo; sua pipa fora cortada e desce lentamente, sem destino, jogada ao vento. Ele também cai lentamente, mas esse era o seu destino; o destino de centenas deles. Vidas jogadas ao vento, sem esperança, apenas mais um número nas estatísticas, mais uma cara que aparecerá nos jornais, mais uma vítima da infindável guerra do tráfico.
***
            – Corre! Corre!
– O Magrinho caiu. Alguém socorre aqui!
– Já era, irmão! Corre, depois a gente voltamos.
A polícia sobe o morro disparando para todos os lados. De cima de uma laje centenas de tiros são disparados em direção aos policiais. Mulheres correm com crianças nos braços, ao gritos. Portas se fecham. Um policial é baleado na perna e fica caído atrás de um carro, outros dão cobertura. Outro policial fala pelo rádio:
– Comando Delta para Cobra... Comando Delta para Cobra, responde... policial ferido... apoio urgente... ambulância...
– Entendido, Comando Delta. Socorro a caminho... Águia decolando, câmbio.
Vários carros fecham a principal estrada do morro: viaturas, ambulância do Corpo de Bombeiros, repórteres. O cenário de guerra está montado. Canais de televisão enviam imagens, via satélite, ao mundo todo, do que acaba de acontecer. Manchetes em jornais, com os mais variados títulos, chamam a atenção em poucos minutos. “Cidade sitiada”, “Guerra Urbana”, “Guerra do Pó”, e mais uma infinidade de coisas são escritas quase ao vivo. Dentro de minutos, as redes sociais estão bombando com as cenas de violência. Vídeos são repassados instantaneamente de mão a mão, mil e umas curtidas em poucos minutos, mas poucos se preocupam em saber que são de fato as vítimas. E praticamente ninguém se preocupará em resolver este problema. A imprensa logo culpará o Governo pela onda desenfreada de violência, os Direitos Humanos entrarão em ação, o comandante responsável pelo Batalhão que invadiu o morro dará coletivas na imprensa e dirá sempre que “os culpados serão punidos”...
...até o próximo confronto.
***
Milhares de pessoas só podem ir para suas casas após o término da operação. Minutos depois o silêncio impera. A fumaça ainda brinca no ar, assim como minutos antes a pipa do menino magrinho ainda brincava; ao contrário da pipa, a fumaça é sinônimo de tristeza. Nessa ocasião, é a marca da velha e incontrolável violência que reina nas grandes cidades, nos morros e no asfalto. Depois que o vento leva a nuvem negra e o cheiro da pólvora, o céu fica azul outra vez, porém o ar de nostalgia domina.
A família da Magrinho chora a sua perda enquanto seu corpo é levado para o IML. Depois de romper as infindáveis barreiras da burocracia, o menino pode ser velado durante alguns minutos na pequena capela do cemitério.
No dia seguinte, dezenas de moleques correm nas vielas do morro, por entre fuzis e pistolas, disputando espaço no céu azul com balas traçantes e fogos de artifícios que indicam que uma nova “carga” está chegando. Minutos depois as vielas se entopem de pessoas comprando papelotes e trouxinhas, fumando, cheirando, enquanto os “vapores” fazem suas entregas aos que não têm coragem de subir. Uma viatura com dois policiais vigia a entrada do morro. Um deles conversa ao celular enquanto o outro dorme sentado no banco de trás. O movimento continua intenso morro acima, morro abaixo. O submundo voltou ao normal. Um menino de aproximadamente dez anos se aproxima da viatura, dirige-se ao policial que fala ao telefone, dá um sinal e um pacote é entregue ao oficial. Agora os dois homens dormem no banco de trás da viatura.
O menino tira do bolso um radiotransmissor, e como se fosse um militar em operação, diz:
– Falcão na escuta... Missão cumprida. A parada foi entregue.
– Tá maneiro, então. Sobe aí que tem outra situação pra tu aí.
E o menino volta ao posto cheio de orgulho tanto quanto qualquer outro trabalhador que volta para casa depois de um longo dia de trabalho.
 Os jornais já não falam mais do Magrinho, o comandante do Batalhão também não aparece mais. Tudo cai, como sempre, no esquecimento. Menos na casa dele, onde uma mãe tristonha olha os outros meninos brincarem na favela e, antes de dormir, dá uma espiada pra cama vazia do filho, tão vazia quanto seu coração.
O Magrinho agora apenas faz parte das estatísticas da violência urbana: número 179 atingido por bala perdida neste ano. Sim, ele era só mais um número nas manchetes de jornais, e no Cemitério do Caju ficou escrito em seu túmulo o número 11, por coincidência a sua idade. E assim, ficaram no túmulo o sorriso e um futuro interrompido de mais um, dentre muitos que se foram e que, infelizmente, ainda hão de ir.
E o céu ficou menos colorido.

João Rodrigues Ferreira

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