Conto classificado no Concurso Literário Prêmio Contos para Viagem – São Paulo -2006
No alto do morro, um
menino franzino, de aproximadamente 11 anos, sem camisa, pés descalços, solta
pipa. Uma pipa alegre e feliz, que se deixa levar nas asas do vento, assim como
o menino corre para cima e para baixo, sem compromisso com o tempo, sem
preocupações com a vida; o único compromisso do garoto é manter sua pipa no ar.
Com seu carretel de linha deslizando no chão enquanto ele puxa, solta, faz uma
quebra de corpo pra todos os lados, caras e bocas... bem, o que ele pensando só
Deus sabe.
Uma
outra pipa corta os ares a várias lajes dali, toda colorida. O grito de “Corta!
Corta!” soa por todos os lados e, em alguns segundos, dezenas de meninos se
aglomeram para acompanhar a guerra que será travada entre as duas pipas. Uma
delas deverá ser cortada, isso dependerá da habilidade de quem as conduz.
A
luta é travada. Cada menino usa de sua agilidade para vencer o duelo. Apenas um
será o vencedor, apesar de que quem vencer não verá a cara de derrotado do
adversário, uma vez que eles estão distantes um do outro, em lajes longes uma
da outra.
Fogos
estouram no ar. As pipas se perdem em meio à fumaceira. O menino franzino perde
o duelo; sua pipa fora cortada e desce lentamente, sem destino, jogada ao
vento. Ele também cai lentamente, mas esse era o seu destino; o destino de
centenas deles. Vidas jogadas ao vento, sem esperança, apenas mais um número
nas estatísticas, mais uma cara que aparecerá nos jornais, mais uma vítima da
infindável guerra do tráfico.
***
–
Corre! Corre!
– O Magrinho caiu.
Alguém socorre aqui!
– Já era, irmão! Corre,
depois a gente voltamos.
A polícia sobe o morro
disparando para todos os lados. De cima de uma laje centenas de tiros são
disparados em direção aos policiais. Mulheres correm com crianças nos braços,
ao gritos. Portas se fecham. Um policial é baleado na perna e fica caído atrás
de um carro, outros dão cobertura. Outro policial fala pelo rádio:
– Comando Delta para
Cobra... Comando Delta para Cobra, responde... policial ferido... apoio
urgente... ambulância...
– Entendido, Comando
Delta. Socorro a caminho... Águia decolando, câmbio.
Vários carros fecham a
principal estrada do morro: viaturas, ambulância do Corpo de Bombeiros,
repórteres. O cenário de guerra está montado. Canais de televisão enviam
imagens, via satélite, ao mundo todo, do que acaba de acontecer. Manchetes em
jornais, com os mais variados títulos, chamam a atenção em poucos minutos.
“Cidade sitiada”, “Guerra Urbana”, “Guerra do Pó”, e mais uma infinidade de
coisas são escritas quase ao vivo. Dentro de minutos, as redes sociais estão bombando
com as cenas de violência. Vídeos são repassados instantaneamente de mão a mão,
mil e umas curtidas em poucos minutos, mas poucos se preocupam em saber que são
de fato as vítimas. E praticamente ninguém se preocupará em resolver este
problema. A imprensa logo culpará o Governo pela onda desenfreada de violência,
os Direitos Humanos entrarão em ação, o comandante responsável pelo Batalhão
que invadiu o morro dará coletivas na imprensa e dirá sempre que “os culpados
serão punidos”...
...até o próximo
confronto.
***
Milhares de pessoas só
podem ir para suas casas após o término da operação. Minutos depois o silêncio
impera. A fumaça ainda brinca no ar, assim como minutos antes a pipa do menino
magrinho ainda brincava; ao contrário da pipa, a fumaça é sinônimo de tristeza.
Nessa ocasião, é a marca da velha e incontrolável violência que reina nas
grandes cidades, nos morros e no asfalto. Depois que o vento leva a nuvem negra
e o cheiro da pólvora, o céu fica azul outra vez, porém o ar de nostalgia
domina.
A família da Magrinho
chora a sua perda enquanto seu corpo é levado para o IML. Depois de romper as
infindáveis barreiras da burocracia, o menino pode ser velado durante alguns
minutos na pequena capela do cemitério.
No dia seguinte,
dezenas de moleques correm nas vielas do morro, por entre fuzis e pistolas,
disputando espaço no céu azul com balas traçantes e fogos de artifícios que
indicam que uma nova “carga” está chegando. Minutos depois as vielas se entopem
de pessoas comprando papelotes e trouxinhas, fumando, cheirando, enquanto os
“vapores” fazem suas entregas aos que não têm coragem de subir. Uma viatura com
dois policiais vigia a entrada do morro. Um deles conversa ao celular enquanto
o outro dorme sentado no banco de trás. O movimento continua intenso morro
acima, morro abaixo. O submundo voltou ao normal. Um menino de aproximadamente dez
anos se aproxima da viatura, dirige-se ao policial que fala ao telefone, dá um
sinal e um pacote é entregue ao oficial. Agora os dois homens dormem no banco
de trás da viatura.
O menino tira do bolso
um radiotransmissor, e como se fosse um militar em operação, diz:
– Falcão na escuta...
Missão cumprida. A parada foi entregue.
– Tá maneiro, então.
Sobe aí que tem outra situação pra tu aí.
E o menino volta ao
posto cheio de orgulho tanto quanto qualquer outro trabalhador que volta para
casa depois de um longo dia de trabalho.
Os jornais já não falam mais do Magrinho, o
comandante do Batalhão também não aparece mais. Tudo cai, como sempre, no
esquecimento. Menos na casa dele, onde uma mãe tristonha olha os outros meninos
brincarem na favela e, antes de dormir, dá uma espiada pra cama vazia do filho,
tão vazia quanto seu coração.
O Magrinho agora apenas
faz parte das estatísticas da violência urbana: número 179 atingido por bala
perdida neste ano. Sim, ele era só mais um número nas manchetes de jornais, e
no Cemitério do Caju ficou escrito em seu túmulo o número 11, por coincidência
a sua idade. E assim, ficaram no túmulo o sorriso e um futuro interrompido de
mais um, dentre muitos que se foram e que, infelizmente, ainda hão de ir.
E o céu ficou menos
colorido.
João Rodrigues Ferreira
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