Conto selecionado para a coletânea Contos de Caminhoneiros – Mercedes Benz – 2008 - São Paulo
Da
pequena Reriutaba, na divisa da serra da Ibiapaba com o sertão, no Ceará, saiu
Chico Mufumbo, ex-vaqueiro e boia-fria, pra tentar uma vida melhor nas terras
do Sul. A exemplo da maioria de seus conterrâneos reriutabenses, seu destino
foi o “meio do mundo”, como eles falam por lá. Iria pra uma terra onde corresse
dinheiro fácil e desfilassem mulatas bonitas. O Velho Chico, como também era
conhecido, pegou seu matulão e seus documentos (na verdade, apenas a
identidade, já que os demais documentos nunca foram tirados) e partiu para a
beira da estrada.
Analfabeto
de pai e mãe, mas cheio de disposição, Velho Chico saiu se despedindo de todos
que encontrava pelo caminho. Ao perguntarem pra onde ia, respondia: “Pra onde o
nariz apontar.” E assim caminhava distraidamente em direção à beira da pista
onde esperava pegar seu destino, ou seja, um pau-de-arara qualquer que fosse
pras bandas do Sul – ou pra onde quer que fosse.
Ali, naquela época, era
rota de carga, onde caminhões varavam as estradas de terra batida, cheias de
buraco e lama, com destino a algum lugar. Passavam caminhões que transportavam
farinha e rapadura pro sertão; e do sertão traziam bodes, carneiros, feijão e
outras coisas para a serra.
Eu,
como o Velho Chico, também andava sem direção. Na verdade eu ia rumo ao Norte,
tentar a sorte nos seringais da Amazônia, mas se aparecesse algum trabalho pelo
meio do caminho, ficaria. Eu havia sido caminhoneiro durante vários anos, de
modo que conhecia as terras daquelas bandas. Para me manter durante a viagem,
reservei algum dinheiro. Fui obrigado a vender meu velho Ford chamado Trovão e
guardei essa mixaria pra essa aventura. Como ex-caminhoneiro – na verdade não
existe ex-caminhoneiro, mas sim caminhoneiro sem caminhão –, meu plano era
juntar uns trocados suficientes para comprar outro caminhão e voltar a fazer o
que eu mais gostava: pegar a estrada. Assim parti, cheio de sonhos.
Saí
das bandas da Ibiapaba de carona com um velho amigo meu até Reriutaba, onde ele
ficaria. Teria de continuar sozinho. Naqueles anos de 1950 não era fácil
transporte pra viagens longas. Só algum navio partindo da capital, mas sempre
saía um pau-de-arara com destino ao oco do mundo, cheio de sertanejos fugindo
da seca, sem muito rumo.
Ao chegar em Reriutaba,
fui informado de que na madrugada seguinte ia sair um desses paus-de-arara pra
Guanabara. Resolvi esperar. Encostei num posto de gasolina, onde havia uns
caminhões estacionados, e pedi permissão ao proprietário para passar a noite
ali. Havia um botequim ao lado, no qual pude tomar umazinha antes de dormir.
Armei minha rede entre dois caminhões, da lateral de um à lateral de outro, mas
não avisei aos motoristas, pois eles estavam descansando e eu não queria
incomodá-los. Peguei no sono. Quando acordei, lá pelas tantas da madrugada, um
dos caminhões ia dando a partida e não tive tempo de saltar da rede, de modo
que minha humilde redinha foi rasgada ao meio e eu caí de costas em um poço de
lama, ou melhor, de óleo de motor. Lá se foi minha banda de rede pendurada no
caminhão...
Do meio da escuridão
surgiu um vulto e me estendeu a mão. Apoiei-me naquele desconhecido e me
levantei, todo sujo de óleo.
– Muito prazer,
Francisco Mariano de Sousa, mais conhecido como Chico Mufumbo – disse o
desconhecido.
– Muito prazer, Isidoro
de Andrade, ao seu dispor, mas pode me chamar de Trovão – respondi.
Chico Mufumbo era um
homem de uns quarenta e tantos anos, forte, peito largo e rosto queimado de
sol, meio corcunda, barba bem-feita e bigode aparado. Usava um chapéu de couro
na cabeça. Um sertanejo típico. Trazia um matulão nas costas, no qual carregava
umas poucas roupas e um punhado de comida. Explicou-me que dentro de meia hora
ia sair um caminhão em direção à Guanabara. Ele estava ali para partir rumo ao
desconhecido, pois ia tentar a sorte em outras paragens, já que, com a seca
apertando por ali, estava sem trabalho.
Às quatro horas da
manhã o pau-de-arara encostou-se ao posto de gasolina, cheio de homens e de
redes penduradas pra tudo que é lado. Todos os passageiros com o mesmo destino,
ou seja, sem destino. A maioria ia para o Sul; outros ficariam em qualquer
fazenda que lhes desse emprego. Chico Mufumbo era um desses. Onde conseguisse
trabalho, ficaria.
O velho caminhão saiu
pesado, roncando e soprando fumaça. Buzinava como se estivesse se despedindo.
Seguiu na escuridão carregando homens e solidão, sonhos e incertezas.
Lembrei-me de meu tempo de caminhoneiro, quando também partia, cheio de sonhos
e saudade pelas estradas esburacadas pelo país afora. O cheiro de fumaça se
misturava ao medo, a traiçoeira morte poderia estar de tocaia na próxima curva
e o cansaço que tomava conta de meu corpo e de minha cabeça era suportado à
base de arrebite. Lembrei-me das vezes em que rodava dias seguidos, das vezes
em que trocava pneus em estradas desconhecidas e das vezes em que ficava horas
à beira de uma rodovia esperando alguém que pudesse me dar uma mãozinha, para
me tirar do prego. Pegava atalhos para fugir de ladrões de cargas, passava
muitas e muitas noites na solidão de uma cabine ou nos braços de um amor momentâneo
de beira de estrada.
Em meio a tantos devaneios,
voltei à realidade quando o motorista parou e anunciou:
– Atenção, senhores
passagêro! Vô falá das passage. Pasagêro de primêra classe paga mil cruzêro.
Passagêro de segunda classe paga quinhentos cruzêro. E passagêro de terceira
classe paga cem cruzêro. Por favô, vamo adiantá as passage.
Chico Mufumbo
perguntou:
– E quem pagar mais
caro, vai onde?
O motorista respondeu:
– Seja de qual classe
fô, todos vão continuar na carroceria do caminhão, tudo junto.
Chico olhou pra mim e
falou:
– Se vai todo mundo
junto, vou pagar terceira classe, que é mais barato.
Concordei. E ficamos
satisfeitos com tamanha economia.
Lá pelo meio do mundo,
após vários dias de estrada e muita chuva, acordamos às cinco da manhã com os
gritos do motorista, bem no meio de um atoleiro. O frio cortava o corpo. Luz,
apenas dos faróis. O caminhão estava atolado até os eixos. O motorista, então,
gritou:
– Atenção, pessoal! Os
passagêro de primêra classe fiquem assentado, os de segunda classe têm que
descer do caminhão e os de tercêra classe vão desatolar o caminhão.
Disparei a rir, pois em
muitos anos de estrada eu nunca havia presenciado nada parecido. Chico Mufumbo
me olhou com um olhar de quem não tinha entendido nada, pegou seu matulão,
acendeu um cigarro e saiu estrada afora, cantando: “Minha vida é andar por este
país / Pra ver se um dia descanso feliz...”
Não tive dúvidas.
Peguei minhas coisas e segui Chico Mufumbo, de quem já havia me tornado amigo.
Quando liguei minha lanterna, consegui, com minha leitura muito fraca, ler uma
frase que tinha no para-choque traseiro do velho caminhão: “Feliz foi Adão, que
nunca teve sogra nem caminhão.” Ri de novo.
E, pela primeira na
vida, abandonei uma carga pelo caminho sem sentir remorsos.
João Rodrigues Ferreira
Maravilhoso! Os acontecimentos se dão de nossa querida Reriutaba. Amei.
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