sexta-feira, 20 de março de 2020

Sem direção



Conto selecionado para a coletânea Contos de Caminhoneiros – Mercedes Benz – 2008 - São Paulo




            Da pequena Reriutaba, na divisa da serra da Ibiapaba com o sertão, no Ceará, saiu Chico Mufumbo, ex-vaqueiro e boia-fria, pra tentar uma vida melhor nas terras do Sul. A exemplo da maioria de seus conterrâneos reriutabenses, seu destino foi o “meio do mundo”, como eles falam por lá. Iria pra uma terra onde corresse dinheiro fácil e desfilassem mulatas bonitas. O Velho Chico, como também era conhecido, pegou seu matulão e seus documentos (na verdade, apenas a identidade, já que os demais documentos nunca foram tirados) e partiu para a beira da estrada.
            Analfabeto de pai e mãe, mas cheio de disposição, Velho Chico saiu se despedindo de todos que encontrava pelo caminho. Ao perguntarem pra onde ia, respondia: “Pra onde o nariz apontar.” E assim caminhava distraidamente em direção à beira da pista onde esperava pegar seu destino, ou seja, um pau-de-arara qualquer que fosse pras bandas do Sul – ou pra onde quer que fosse.
Ali, naquela época, era rota de carga, onde caminhões varavam as estradas de terra batida, cheias de buraco e lama, com destino a algum lugar. Passavam caminhões que transportavam farinha e rapadura pro sertão; e do sertão traziam bodes, carneiros, feijão e outras coisas para a serra.
            Eu, como o Velho Chico, também andava sem direção. Na verdade eu ia rumo ao Norte, tentar a sorte nos seringais da Amazônia, mas se aparecesse algum trabalho pelo meio do caminho, ficaria. Eu havia sido caminhoneiro durante vários anos, de modo que conhecia as terras daquelas bandas. Para me manter durante a viagem, reservei algum dinheiro. Fui obrigado a vender meu velho Ford chamado Trovão e guardei essa mixaria pra essa aventura. Como ex-caminhoneiro – na verdade não existe ex-caminhoneiro, mas sim caminhoneiro sem caminhão –, meu plano era juntar uns trocados suficientes para comprar outro caminhão e voltar a fazer o que eu mais gostava: pegar a estrada. Assim parti, cheio de sonhos.
            Saí das bandas da Ibiapaba de carona com um velho amigo meu até Reriutaba, onde ele ficaria. Teria de continuar sozinho. Naqueles anos de 1950 não era fácil transporte pra viagens longas. Só algum navio partindo da capital, mas sempre saía um pau-de-arara com destino ao oco do mundo, cheio de sertanejos fugindo da seca, sem muito rumo.
Ao chegar em Reriutaba, fui informado de que na madrugada seguinte ia sair um desses paus-de-arara pra Guanabara. Resolvi esperar. Encostei num posto de gasolina, onde havia uns caminhões estacionados, e pedi permissão ao proprietário para passar a noite ali. Havia um botequim ao lado, no qual pude tomar umazinha antes de dormir. Armei minha rede entre dois caminhões, da lateral de um à lateral de outro, mas não avisei aos motoristas, pois eles estavam descansando e eu não queria incomodá-los. Peguei no sono. Quando acordei, lá pelas tantas da madrugada, um dos caminhões ia dando a partida e não tive tempo de saltar da rede, de modo que minha humilde redinha foi rasgada ao meio e eu caí de costas em um poço de lama, ou melhor, de óleo de motor. Lá se foi minha banda de rede pendurada no caminhão...
Do meio da escuridão surgiu um vulto e me estendeu a mão. Apoiei-me naquele desconhecido e me levantei, todo sujo de óleo.
– Muito prazer, Francisco Mariano de Sousa, mais conhecido como Chico Mufumbo – disse o desconhecido.
– Muito prazer, Isidoro de Andrade, ao seu dispor, mas pode me chamar de Trovão – respondi.  
Chico Mufumbo era um homem de uns quarenta e tantos anos, forte, peito largo e rosto queimado de sol, meio corcunda, barba bem-feita e bigode aparado. Usava um chapéu de couro na cabeça. Um sertanejo típico. Trazia um matulão nas costas, no qual carregava umas poucas roupas e um punhado de comida. Explicou-me que dentro de meia hora ia sair um caminhão em direção à Guanabara. Ele estava ali para partir rumo ao desconhecido, pois ia tentar a sorte em outras paragens, já que, com a seca apertando por ali, estava sem trabalho.
Às quatro horas da manhã o pau-de-arara encostou-se ao posto de gasolina, cheio de homens e de redes penduradas pra tudo que é lado. Todos os passageiros com o mesmo destino, ou seja, sem destino. A maioria ia para o Sul; outros ficariam em qualquer fazenda que lhes desse emprego. Chico Mufumbo era um desses. Onde conseguisse trabalho, ficaria.
O velho caminhão saiu pesado, roncando e soprando fumaça. Buzinava como se estivesse se despedindo. Seguiu na escuridão carregando homens e solidão, sonhos e incertezas. Lembrei-me de meu tempo de caminhoneiro, quando também partia, cheio de sonhos e saudade pelas estradas esburacadas pelo país afora. O cheiro de fumaça se misturava ao medo, a traiçoeira morte poderia estar de tocaia na próxima curva e o cansaço que tomava conta de meu corpo e de minha cabeça era suportado à base de arrebite. Lembrei-me das vezes em que rodava dias seguidos, das vezes em que trocava pneus em estradas desconhecidas e das vezes em que ficava horas à beira de uma rodovia esperando alguém que pudesse me dar uma mãozinha, para me tirar do prego. Pegava atalhos para fugir de ladrões de cargas, passava muitas e muitas noites na solidão de uma cabine ou nos braços de um amor momentâneo de beira de estrada.
Em meio a tantos devaneios, voltei à realidade quando o motorista parou e anunciou:
– Atenção, senhores passagêro! Vô falá das passage. Pasagêro de primêra classe paga mil cruzêro. Passagêro de segunda classe paga quinhentos cruzêro. E passagêro de terceira classe paga cem cruzêro. Por favô, vamo adiantá as passage.
Chico Mufumbo perguntou:
– E quem pagar mais caro, vai onde?
O motorista respondeu:
– Seja de qual classe fô, todos vão continuar na carroceria do caminhão, tudo junto.
Chico olhou pra mim e falou:
– Se vai todo mundo junto, vou pagar terceira classe, que é mais barato.
Concordei. E ficamos satisfeitos com tamanha economia.
Lá pelo meio do mundo, após vários dias de estrada e muita chuva, acordamos às cinco da manhã com os gritos do motorista, bem no meio de um atoleiro. O frio cortava o corpo. Luz, apenas dos faróis. O caminhão estava atolado até os eixos. O motorista, então, gritou:
– Atenção, pessoal! Os passagêro de primêra classe fiquem assentado, os de segunda classe têm que descer do caminhão e os de tercêra classe vão desatolar o caminhão.
Disparei a rir, pois em muitos anos de estrada eu nunca havia presenciado nada parecido. Chico Mufumbo me olhou com um olhar de quem não tinha entendido nada, pegou seu matulão, acendeu um cigarro e saiu estrada afora, cantando: “Minha vida é andar por este país / Pra ver se um dia descanso feliz...”
Não tive dúvidas. Peguei minhas coisas e segui Chico Mufumbo, de quem já havia me tornado amigo. Quando liguei minha lanterna, consegui, com minha leitura muito fraca, ler uma frase que tinha no para-choque traseiro do velho caminhão: “Feliz foi Adão, que nunca teve sogra nem caminhão.” Ri de novo.
E, pela primeira na vida, abandonei uma carga pelo caminho sem sentir remorsos.

João Rodrigues Ferreira



Um comentário:

  1. Maravilhoso! Os acontecimentos se dão de nossa querida Reriutaba. Amei.

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