Conto classificado na coletânea Panorâmicas Palavras – São Paulo - 2006
O
velho do sebo
Um velho marinheiro já
aposentado e sem nenhuma preocupação financeira ou familiar – é o que falavam
–, viúvo e com os filhos todos criados passava suas tardes a devorar livros e
mais livros. Lia de tudo: história, geografia, religião... Diziam que era
místico, mas nunca pude confirmar isso. É verdade que muitas vezes ele ficava
conversando com o vento como se fosse um velho amigo sentado ao seu lado.
Muitos diziam que era maluco. Como fiquei sabendo disso tudo é uma outra
história.
Após
ler toda a sua biblioteca, ele passou a viver atrás de sebos. Por ser
marinheiro, acredito, resolveu frequentar o “Mar de Histórias”, um sebo em
Copacabana. Eu mesmo o vi por lá diversas vezes. Ora folheava um livro, ora o
comentava. Com quem, não sei. Às vezes falava com um tal de Machado, outras
vezes falava em um tal Ramos, outras ainda com Olavo... assim, com a maior
intimidade. Numa certa manhã, quando o encontrei por lá, olhou para mim e
me chamou de Alencar. Por um instante achei que ele estivesse maluco. Não nos
conhecíamos, embora eu já o tivesse visto por lá antes.
Certa vez, cheguei ao
sebo e lá estava ele vestido com um velho uniforme de marinheiro a olhar “Navio
Negreiro”. Olhava a capa, abria-o, folheava – se o lia não sei –, colocava-o de
volta na estante, pegava-o novamente. Em seguida, dirigia-se ao balcão e
perguntava o preço. Devolvia-o ao seu lugar. E assim fazia com todos os livros
que pegava. Cheguei a pensar que fosse um velho avarento desejoso de ler o
livro mas sem coragem de comprá-lo.
Fiquei curioso com
aquela situação e passei a observar seus passos. Ele não demorou muito e se
foi.
Sempre que eu passava
naquele local – e foram muitas vezes, pois eu era universitário na época –, lá
estava o velho a folhear livros, no entanto nunca o vi comprar nenhum. Era
sempre a mesma coisa: abria, folheava, perguntava o preço e o devolvia ao seu
lugar de origem. O vendedor parecia não se incomodar com ele.
Cheguei ao vendedor e
perguntei se conhecia aquele estranho senhor pelo qual eu já sentia uma
certa curiosidade. O vendedor apenas me falou sem sequer olhar pra mim que
aquele era o velho do sebo, e quando eu quis perguntar por que o chamavam
assim, ele simplesmente deu as costas e me ignorou. Mais uma vez fui pra casa
com a chama da curiosidade acesa, me queimando por dentro. E se eu perguntasse
ao próprio velho do sebo por que o chamavam assim, provavelmente ele não me
responderia nada e me daria as costas também.
Passei a frequentar
aquele sebo duas vezes por semana, às vezes mais, e lá estava o velho. Passei a
ir três vezes, quatro, cinco, e lá estava ele. Eu não aguentava mais aquele
suplício. Haveria de ter uma razão de ele estar ali todos os dias. Nem um louco
iria a um sebo todos os dias. O que faria com que um velho fosse a um sebo
todos os dias? Ele poderia estar jogando damas na pracinha, caminhando na
praia, brincando com os netos, jogando frescobol no Posto Cinco com os
amigos... Por que ele ia ali todos os dias?
No dia seguinte acordei
cedo e fui esperar o velho. Eu teria de descobrir esse mistério. Ao entrar no
sebo meus olhos o encontraram com a mesma mania de sempre. Seu olhar encontrou
o meu, e vi em seus olhos um quê de abandono. A tristeza de seu olhar
contrastava com o verde de seus olhos, que buscavam na prateleira mais um amigo
pra conversar. Quis me aproximar dele, mas logo perdi a coragem. O seu braço
trêmulo tentava, lentamente, se arrastar até o objeto desejado. Cheguei a
pensar em oferecer-lhe ajuda, mas recuei. Talvez eu estivesse sendo
inconveniente, portanto fiquei apenas observando. Senti-me meio sem graça por
querer invadir a privacidade daquele pobre homem, mas não resisti, continuei
lá. Quem sabe agora fosse falar com Bilac, Rachel, Lins.
Esperei.
Finalmente, sua mão
trêmula alcançou uma Bíblia. Ele soprou a poeira da capa, folheou-a e parou em
Mateus e leu em voz bem audível (Esta foi a primeira vez, e única, em que ouvi
sua voz): “Mateus 11.28: Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos,
e eu vos aliviarei”.
Dessa vez não perguntou
o preço. Achei que tivesse esquecido de perguntar. Em seguida, fechou-a e
devolveu-a à prateleira. Levantou ao céu um olhar de piedade e saiu.
Nunca mais o encontrei
por lá.
João Rodrigues Ferreira
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