sexta-feira, 20 de março de 2020

O velho do sebo

Conto classificado na coletânea Panorâmicas Palavras – São Paulo - 2006

O velho do sebo
Um velho marinheiro já aposentado e sem nenhuma preocupação financeira ou familiar – é o que falavam –, viúvo e com os filhos todos criados passava suas tardes a devorar livros e mais livros. Lia de tudo: história, geografia, religião... Diziam que era místico, mas nunca pude confirmar isso. É verdade que muitas vezes ele ficava conversando com o vento como se fosse um velho amigo sentado ao seu lado. Muitos diziam que era maluco. Como fiquei sabendo disso tudo é uma outra história.
            Após ler toda a sua biblioteca, ele passou a viver atrás de sebos. Por ser marinheiro, acredito, resolveu frequentar o “Mar de Histórias”, um sebo em Copacabana. Eu mesmo o vi por lá diversas vezes. Ora folheava um livro, ora o comentava. Com quem, não sei. Às vezes falava com um tal de Machado, outras vezes falava em um tal Ramos, outras ainda com Olavo... assim, com a maior intimidade. Numa certa manhã, quando o encontrei por lá, olhou para mim e me chamou de Alencar. Por um instante achei que ele estivesse maluco. Não nos conhecíamos, embora eu já o tivesse visto por lá antes.
Certa vez, cheguei ao sebo e lá estava ele vestido com um velho uniforme de marinheiro a olhar “Navio Negreiro”. Olhava a capa, abria-o, folheava – se o lia não sei –, colocava-o de volta na estante, pegava-o novamente. Em seguida, dirigia-se ao balcão e perguntava o preço. Devolvia-o ao seu lugar. E assim fazia com todos os livros que pegava. Cheguei a pensar que fosse um velho avarento desejoso de ler o livro mas sem coragem de comprá-lo.
Fiquei curioso com aquela situação e passei a observar seus passos. Ele não demorou muito e se foi.
Sempre que eu passava naquele local – e foram muitas vezes, pois eu era universitário na época –, lá estava o velho a folhear livros, no entanto nunca o vi comprar nenhum. Era sempre a mesma coisa: abria, folheava, perguntava o preço e o devolvia ao seu lugar de origem. O vendedor parecia não se incomodar com ele.
Cheguei ao vendedor e perguntei se conhecia aquele estranho senhor pelo qual eu já sentia uma certa curiosidade. O vendedor apenas me falou sem sequer olhar pra mim que aquele era o velho do sebo, e quando eu quis perguntar por que o chamavam assim, ele simplesmente deu as costas e me ignorou. Mais uma vez fui pra casa com a chama da curiosidade acesa, me queimando por dentro. E se eu perguntasse ao próprio velho do sebo por que o chamavam assim, provavelmente ele não me responderia nada e me daria as costas também.
Passei a frequentar aquele sebo duas vezes por semana, às vezes mais, e lá estava o velho. Passei a ir três vezes, quatro, cinco, e lá estava ele. Eu não aguentava mais aquele suplício. Haveria de ter uma razão de ele estar ali todos os dias. Nem um louco iria a um sebo todos os dias. O que faria com que um velho fosse a um sebo todos os dias? Ele poderia estar jogando damas na pracinha, caminhando na praia, brincando com os netos, jogando frescobol no Posto Cinco com os amigos... Por que ele ia ali todos os dias?
No dia seguinte acordei cedo e fui esperar o velho. Eu teria de descobrir esse mistério. Ao entrar no sebo meus olhos o encontraram com a mesma mania de sempre. Seu olhar encontrou o meu, e vi em seus olhos um quê de abandono. A tristeza de seu olhar contrastava com o verde de seus olhos, que buscavam na prateleira mais um amigo pra conversar. Quis me aproximar dele, mas logo perdi a coragem. O seu braço trêmulo tentava, lentamente, se arrastar até o objeto desejado. Cheguei a pensar em oferecer-lhe ajuda, mas recuei. Talvez eu estivesse sendo inconveniente, portanto fiquei apenas observando. Senti-me meio sem graça por querer invadir a privacidade daquele pobre homem, mas não resisti, continuei lá. Quem sabe agora fosse falar com Bilac, Rachel, Lins.
Esperei.
Finalmente, sua mão trêmula alcançou uma Bíblia. Ele soprou a poeira da capa, folheou-a e parou em Mateus e leu em voz bem audível (Esta foi a primeira vez, e única, em que ouvi sua voz): “Mateus 11.28: Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei”.
Dessa vez não perguntou o preço. Achei que tivesse esquecido de perguntar. Em seguida, fechou-a e devolveu-a à prateleira. Levantou ao céu um olhar de piedade e saiu.
Nunca mais o encontrei por lá.

João Rodrigues Ferreira


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