A crônica "A Velha Estação" foi selecionada para compor a 23ª edição da Revista LiteraLivre.
Confira o texto na íntegra.
A
velha estação
Quase diariamente passo próximo à velha
estação ferroviária, e meus olhos me fazem tirar a vista da direção e olhar praquela
figura triste, desolada, feito um menino choroso, encolhido num canto. E eu
olho, meio com pena, aquele pequeno prédio abandonado, desbotado pelo sol e
pela chuva, desvalido durante todo o ano, sem nem mesmo uma demão de tinta para
dar-lhe uma pequena esperança de vida. Nem mesmo no Natal ou no fim de ano um
pouquinho de carinho lhe é dado.
Certa
tarde, ao voltar da escola, meus olhos insistiram em se desviarem novamente em
direção àquele corpo sem vida, largado à beira da linha. Quis ignorá-los, mas
eles insistiram e me convenceram. E para a minha surpresa, a velha estação
ainda estava viva. Piscou-me um olhar, daqueles ternos, que só os velhinhos
abandonados sabem lançar do fundo da alma, querendo um pouco de atenção.
Parei.
Ela acenou. Senti que implorava por companhia, mesmo que fosse por um minuto
apenas. Retomei a direção e pus o carro em movimento. Um “Psiu!” me fez parar
bruscamente. Um motoqueiro, surpreso com minha parada repentina, apitou forte e
cuspiu qualquer palavrão que não entendi. Todo o meu ser estava voltado agora
praquela pobre alma, que tentava afugentar a solidão por um momento que fosse.
Encostei
o automóvel na beira da rua mais à frente, para não atrapalhar o trânsito, subi
a linha e fui me aproximando, vagarosamente, receando que velhos fantasmas
voassem de dentro de suas paredes rachadas ou que saíssem de seu telhado
esburacado.
O
sol não tinha mais o mesmo vigor de duas horas atrás, portanto não precisei de
pressa. Subi até a linha do trem. Os trilhos ainda tremiam com o calor que
havia feito durante a tarde, mostrando-se como uma longa e sinuosa cobra, torta
aqui e ali, devido à elevada temperatura que lhe tinha judiado as costas nuas
praticamente o dia todo.
Subi
a calçada suja, com várias rachaduras, latinhas de cervejas, pontas de cigarros
e camisinhas usadas, denunciando seu completo estado de abandono. Na verdade,
não apenas de abandono, mas de descuido também, pois esse lixo que encontrei
mostrava que a velha estação tinha companhia, muito provavelmente nas horas
mais calmas da noite, quando boêmios, viciados e amantes vinham curtir momentos
de prazer.
Pus-me
de pé, à sua frente, esperando que ela me dissesse algo. E com sua voz já
combalida pelos anos de solidão, mandou-me sentar. Olhei pros lados. Nenhuma
cadeira. Me indicou um canto da calçada. Me sentei. Quis perguntar-lhe alguma
coisa, mas seus olhos me olharam de tal forma que preferi me calar. Não havia
sido chamado ali pra falar, mas pra ouvir.
Sua
voz, a princípio, era lenta, quase morta. Mas, pouco a pouco, com o desenrolar
de sua narrativa, foi ganhando uma vivacidade de tal forma que me envolveu por
inteiro na sua história. Ela estava viva de novo. E falava como uma garota que
acabara de receber uma visita após sua festa de quinze anos.
E
me falou de seus momentos de glórias, quando tudo começou nos anos sessenta do
século passado. No seu calçadão, jovens partiam pra estudar na capital, levando
na bagagem umas poucas roupas, muitos sonhos e saudade, abraçados a namoradas
ou a familiares, com seus rostos rubros e quentes, segurando as lágrimas que
teimavam em descer antes da despedida. Por outro lado, risos e abraços
calorosos esperavam quem chegava.
Enquanto
o trem não seguia viagem, entre um café e outro pessoas conversavam sobre
novidades trazidas da capital ou de outras cidades. Falavam de inverno, de
seca, de política e de futilidades. Crianças corriam, gritavam e chupavam
bombons. Mas logo o apito do trem anunciava a partida, e a correria agora era
pra não perdê-lo. Muitos o perdiam, atrasados, chegavam ainda de ressaca,
mastigando palavrões, culpando o relógio e tudo mais, e acabavam ficando ali,
por mais algum tempo, tomando mais uma dose pra afogar o aborrecimento.
Mal
dava tempo a agitada estação descansar e lá vinha outro Horário carregado de
conversas, novidades, indagações, lembranças, saudades, paixões... No pátio,
mais abraços, beijos, apertos de mãos, choro, muxoxos, bagagens... Mas logo o
apito do trem, como um vendaval, levava tudo outra vez. E lá se ia o gigante
soltando fumaça, apitando, avisando a todos de sua partida. Alguns ainda
corriam atrás, tentando alcançá-lo, mas o velho trem era como o tempo, não
podia esperar. E lentamente pegava embalo e saía roncando ferozmente, deixando
casas e ruas pra trás, ganhando os cortes, a mata, as pontes e se embrenhava sertão
afora, como exigia o seu destino. E mais uma vez ficava em silêncio, ou quase,
a jovem estação.
Eu,
absorto, ouvindo aquele romântico relato, fiquei imaginando o quanto de vida
teve aquela pobre estação. Nunca tive o prazer de pegar um Horário ali, mas
imaginei que muitos bons momentos, muitas histórias, muitas despedidas,
encontros e reencontros tenham acontecido naquele pequeno espaço físico, mas
que se alargava com tanta gente que passava por ela, indo e vindo de outras
paragens, e com certeza também ficava um pedaço de cada pessoa que embarcava,
desembarcava ou que simplesmente passava por ali.
Por
um momento, viajei no tempo e vi aquela multidão sem a correria de hoje, sem
celular, sem tecnologia – às vezes um ou outro radinho de pilha, talvez –, com
todo o tempo do curto tempo que o Horário lhes dispunha. Ouvi vozes, choros,
soluços, risos, gritos de alegria; vi rostos cansados, sonolentos, aflitos,
felizes, tristes, surpresos, ansiosos e tantas outras imagens que se podem ver
em uma estação ferroviária.
Voltei
a mim quando uma lágrima quente e pesada da velha estação caiu sobre meu rosto.
Mas não era uma lágrima de tristeza. Era de alegria. A alegria presa em seu
velho coração de pedra corroído pelo tempo tomou fôlego, espantando de si a
solidão que o atormentava fazia décadas.
Se aquela velha estação
estava feliz por uma companhia ao longo de mais ou menos meia hora, imagine
como terá sido seu passado nos tempos em que o destino de muita gente dependia
dela!
E por uns bons minutos
fiquei ali, imóvel, só ouvidos, escutando as lamúrias e as glórias de uma
abandonada estação de trem.
Só
quando um longo trem-cargueiro apitou, chamando a atenção de quem cruzava a
linha a alguns metros dali, levantei-me e saí sem me despedir.
Ainda
olhei pra trás, e vi o olhar saudoso da velha estação espiando o cargueiro
passar direto, sem nem mesmo cumprimentá-la.
E
novamente ela se enclausurou em sua solidão.
João Rodrigues – Reriutaba – Ceará
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