Sempre é bom escrever. Publicar, melhor ainda.
Para fechar o ano de 2019 em alta, mais uma publicação. Desta vez na "Revista Acadêmica IX - Ipu na Ibiapaba", em uma Antologia organizada pela Academia Ipuense de Letras, Ciências e Artes.
O homenageado da vez foi a cidade de Ipu, e participei com o conto "A virgem dos lábios de mel", que tem Iracema como protagonista.
Eis o texto na íntegra.
A
virgem dos lábios de mel
O sol descambava por trás da Serra da
Ibiapaba, e seus últimos raios refletiam nas límpidas águas do Ipuçaba, que
preguiçosamente deslizavam rio abaixo formando a majestosa cascata na qual
Iracema incontáveis vezes se banhou. Um bem-te-vi saltava de um galho a outro
de uma mangueira, como se estivesse apenas se exercitando, ou talvez procurasse
um galho seguro onde pudesse repousar durante a noite que se aproximava. O dia,
agora agonizante, dava seus últimos suspiros. Um morcego sobrevoou a cachoeira,
que cantava suavemente enquanto percorrias as curvas sinuosas do Ipuçaba. Um
grilo já cantava intermitentemente. Uma coruja surgiu. Distante, uma gigante
bola alaranjada mergulhou por trás da serra.
A
noite caiu.
Um
vento frio vadiou pelo meu corpo seminu. Sempre gostei dos banhos da bica no
fim do dia. Todos os banhistas e turistas já se tinham ido. Apenas eu insistia
em permanecer. Uma jaçanã gritou lá embaixo, e seu grito ecoou pela mata
silenciosa. O relógio da igreja soou até a sexta batida. A hora do Angelus.
Sempre senti medo nesse horário, então me apressei pra ir embora.
Ouvi
um leve chiado de folha seca. Minha visão, feito um raio, dirigiu-se em direção
ao som e parou em uma figura imóvel sobre as pedras acima da bica. Firmei o
olhar. Uma mulher. Iracema? Sim, Iracema! A virgem dos lábios de mel. Sacudi a
cabeça. Será que eu tinha bebido tanto assim? Esfreguei os olhos e olhei
novamente. Ela já havia saltado lá de cima e, sem pudor – nem mesmo havia uma
pena para cobrir suas vergonhas –, passou a banhar-se onde tantas vezes se
banhara. Só podia ser em espírito!
Receoso,
aproximei-me dela. Não havia outra coisa a fazer. Eu precisava ver se era
verdade o que meus olhos me revelavam. Ela olhou para seu arco que havia
deitado sobre uma pedra. Recuei. Ela dirigiu-se até ele e, para meu espanto,
quebrou a única flecha que trazia. Entendi. Como viera ao mundo, a virgem – até
então eu ainda não tinha certeza de
sua virgindade – estendeu para mim o licor da jurema. Cerimoniosamente o
aceitei. Naquele momento, nem o próprio silêncio, para mim, era tão silencioso.
Levei a cuia à minha boca, que continha um licor verde e adocicado. Não me
recordo se no livro o licor era doce ou não, mas aquele era tão doce quanto o favo
do jati. Bebi um pouco. Devolvi-o a ela, que também bebeu.
Não sei por quanto tempo
ficamos ali. Quando dei por mim, Ipu há muito já dormia e eu estava deitado num
banco da Praça de Iracema, enquanto a própria Iracema, em carne e osso, ou em
espírito, passava seus dedos suavemente no rosto da estátua de Martim. Senti
uma pontada de ciúme. Ela pareceu ter notado. Afastou a mão mais rápido do que
o disparo de sua seta. Caminhamos até a estação, onde ficamos sentados por
algum tempo. Dali, caminhamos de mãos dadas até a Academia de Letras, Ciências
e Artes de Ipu, onde curiosamente um exemplar de “Iracema” estava deitado no
batente da porta. Ela o folheou. Se o leu não sei, mas seu indicador deslizou
por alguns minutos pelas linhas escritas por Alencar. Enquanto seu dedo
deslizava, um suspiro forte e saudoso brotou de seu seio.
O livro, ela o deixou
onde estava e nos dirigimos à Igreja Matriz. Iracema olhou fixamente o
cruzeiro. Suspirou. Saudades de Martim? Não sei. Não ousei perguntar.
Caminhamos novamente.
Como dois enamorados, fizemos um tour por quase todo o Ipu, e a lua já despontava
no sertão quando chegamos ao topo do Alto dos Catorze, pois queríamos ver a
musa noturna reinar. Os raios do luar me abriram os olhos, e quando refletiram nos
negros e longos cabelos da virgem, pude perceber que, de fato, eles eram mais
negros que a asa da graúna. Seus olhos pareciam duas jabuticabas. Seu corpo era
alto e escultural. Não me parecia uma índia. Na verdade só tinha visto índias
nos livros de história e na televisão. Ela era muito mais linda que qualquer
uma delas. Nem mesmo Alencar conseguira descrever tamanha beleza. Talvez estivesse
descrita nas entrelinhas do livro, e bem que eu poderia ter percebido se o
tivesse lido mais cuidadosamente.
Melhor assim, pois ali, com
a cidade adormecida, sob o prateado do luar, li Iracema capítulo após capítulo,
nem mesmo as entrelinhas passaram despercebidas.
João Rodrigues Ferreira
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